quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Mulher e Pedra

Carlos José Raupp Ramos

Era uma noite muito fria, daquelas de “renguear cusco na esquina”, como diz o gaúcho, e eu, muito a contragosto, tive de me retirar e dormir no sofá da sala.
Certamente muitos de vocês já passaram por isso, conviver, ou tentar, com uma mulher na TPM, Tensão Pré Menstrual ou Treinadas Para Matar, como queiram. Minha excelentíssima esposa estava numa crise terrível, e nos três primeiros dias, sim, porque a dela dura mais de semana, eu não me arrisco a discutir com ela, por isso eu fui dormir no móvel acima referenciado e lembrei-me de uma história muito curiosa que me aconteceu quando ainda era estudante de graduação. 
Eu tinha recém terminado uma abstrusa prova de patologia e corria junto a um colega e amigo para não perder o começo de uma aula importante, e para tal decidimos cortar caminho por dentro do campus junto à estrada nova que estava sendo aberta na ala sul.
O dia estava ensolarado, o semestre estava atrasado em função de uma greve geral, dessa forma as aulas estavam sendo oferecidas de maneira concentrada e alguns professores não permitiam atrasos, naquela época era assim, hoje tudo mudou, infelizmente. Estávamos no auge do verão, o calor era insuportável e o sol castigante, ainda mais naquela hora próximo ao meio dia.  
Ao chegarmos à estrada nova podiam-se ver muitos homens com uniformes acinzentados e picaretas na mão, tendo aos tornozelos grilhões seguidos de correntes que os uniam. Naquela época um projeto inovador fazia com que detentos de uma penitenciária federal trabalhassem para diminuir sua pena, e para tanto, colocaram tais presidiários a quebrar as pedras para que a rua fosse mais bem nivelada naquele local com a recapagem asfáltica. Quando passamos próximos daqueles homens notamos que um deles, baixinho, cabelo muito encaracolado, pele morena e castigada pelo sol, tendo as pontas das orelhas ressecadas e quebradiças, nos chamava gesticulando muito.
Eu e meu colega paramos, nos olhamos, pois já estávamos mais do que atrasados e sem nos comunicarmos verbalmente decidimos chegar mais perto do correcional. 
– O bichinho, tu não podia me arrumar um golinho d’água? – disse o baixinho com um forte sotaque nordestino.
Novamente eu e meu colega nos olhamos e eu rapidamente disse, sem dar chance a ele, para buscar um copo de água para o pobre homem. Ele me olhou com ar de quem queria me dar um chute nas partes íntimas e foi até a cantina. Nessa altura seria de bom alvitre nem irmos mais aquela aula.
Enquanto meu colega distanciava-se para buscar o tão esperado copo de água eu olhei para o carcerário que de cabeça baixa assobiava “Asa Branca", do grande Luiz Gonzaga. Eu estava um pouco nervoso, por dois motivos, um deles, e o mais importante, era a aula que eu estava perdendo, e o outro era por estar perto daqueles homens que estavam presos, sabia-se lá por quê?
Decidi perguntar qual foi o motivo da prisão dele, o homem parou de assoviar e falou.
– Aqui todo mundo é inocente, seu moço – disse ele sorrindo.
Eu concordei com um sorriso e fiquei quieto, mas em seguida ele puxou conversa outra vez.
Voismecê parece ser um cabra bom, eu vou te confessar bichinho, chegue aqui mais perto deu – disse o cativo. 
Com muito receio eu me abaixei para ficar mais perto dele que estava dentro de uma vala de um metro e meio escorado em sua picareta de quebrar pedras.
– Mulher e pedra é coisa do demonho! – disse ele passando a mão pela testa para tirar as gotas de suor.
Eu devo ter feito a maior cara de quem não entendeu nada, porque ele continuou sem eu ter perguntado nada.
– Meu nome é Severino, sou oriundo de Pernambuco. – falou retirando umas casquinhas da ponta da orelha esquerda.  – Sempre fui oreia seca, o senhor sabe o que é isso? 
Mais uma vez minha cara deve ter me delatado, pois não respondi e ele continuou.
– Eu trabaiava de contra-mestre em obras, lá mesmo em Recife, casei, fiz minha casinha e vivia feliz da vida com a minha bichinha, vixe que mulé arretada... – ele parou e ficou olhando para o nada, como quem se lembra de algo bom. - Até que um dia o serviço ficou escasso e eu tive de me virar em outro lugar, fui para o Ceará trabalhar lá, num sabe.
Eu olhei em direção a cantina, muito desconfiado, comecei a pensar se meu amigo teria realmente ido buscar a água ou tinha ido para a aula e me deixado ali, feito um trouxa.
– Fiquei prá mais de mêis trabaiano lá no Ceará, pra modo de dá o de melhor pra aquela vadia... – disse ele com um tom seco na voz, porém sem emoção. – Um belo dia, vortei pra casa mais cedo, um dia antes, sem avisar a bichinha, e não deu outra, peguei ela mais um cabra da peste na cama... meu papagaio empaiolado... sem titubear... passei a pexera no bucho dos dois e fuji aqui para o sul maravilha. 
– E mesmo assim prenderam o senhor? – perguntei espantado em vê-lo contando aquela história como quem avisa que vai ao supermercado e já volta.
– Não, vixe, isso faz mais de trinta anos – disse Severino com muita calma. – Quano cheguei aqui no sul maravilha, trabaiei muitos anos de oreia seca e ninguém nunca me descobriu. 
– Mas como foi que te prenderam então? – perguntei já com a certeza de que meu amigo estava em sala de aula.

– Me prenderam, porque a besta véia aqui... – disse ele –  ... deu bobeira, e resolveu roubar um radinho de pilha que estava dando sopa em uma janela, pra modo de ouvir uns forró.
– Mas que falta de sorte, não te prenderam por ter matado tua mulher, mas te prenderam por roubar um radinho de pilha – disse eu me erguendo para sair.
– Pois é bichinho, mas foi praga da Ceição, minha finada... – disse Severino. - ... antes de morrer ela me oiou e disse “Seu fio duma égua, eu posso morre, mas tu nunca mais vai dança forró com ninguém”, ... e eu fui roubar justo, vixe, o radinho de pilha do juiz da cidade... me lasquei.
Nesse momento meu colega apareceu correndo, mais tarde fiquei sabendo que a cantina estava lotada, por isso a demora, e trouxe um copo de água bem gelado que entregou a Severino. Este sorveu aquele copo de água como se fosse uma bebida dos deuses e disse em seguida:
– Que Deus abençoe cêis dois e nunca se esqueçam: “Mulher e pedra é coisa do diabo” – disse Severino filosofando.
Naquele dia no caminho para o bloco A, meu colega me perguntou o que aquilo queria dizer e eu respondi que não tinha muita certeza, mas hoje aqui, depois de anos de casado e dormindo nesta noite fria em um sofá desconfortável eu posso, no mínimo, desconfiar e dizer, modificando um pouco a frase de Severino, “Mulher na TPM e pedra é coisa do diabo”.

* Professor Microbiologia
Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS
Campus Laranjeiras do Sul/PR

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